Uma outra História

 

Um moço negro e gay que nasceu na periferia. O quinto filho de uma família pobre. Seria aquele enredo comum no Brasil não fosse pelo detalhe de que Apolinário traçou outro caminho pra si, e é hoje expressão e resistência no mundo da moda. Eu poderia dizer que ele faz sucesso, mas o que ele faz é muito maior do que isso.

 

Lia Bock

 

Vitor Apolinário fala olhando fixamente dentro dos olhos do interlocutor. Parece avoado e diz que o DDA faz com que perca a atenção nas coisas depois de pouco tempo. Mas o que vemos é uma pessoa atenta e focada que ama o que faz e ama falar sobre o que faz. O estilista é um dos (ainda) poucos negros inseridos na moda brasileira. Cresceu na favela, onde assumiu a homossexualidade e aprendeu o significado da palavra comunidade. Apolinário é aquele um que conseguiu atravessar as atravancadas camadas da pirâmide social e mostrar que com um pouco de oportunidade é possível criar outra história, diferente dessa comum, tão injusta e vertical.

 

Com apenas 24 anos, o estilista quer mudar o cenário onde, na maioria das vezes, é o único negro dos rolês profissionais. Ele trabalha com moda, verdade, mas não está interessado em lançar a próxima coleção. Apolinário quer usar a roupa para falar de corpo, de cor, de inclusão e de gênero.

 

Se é difícil? É muito difícil, mas ele garante que seu maior impulsionador na vida são justamente as dificuldades. “Quanto mais me falam não, mas eu tenho vontade de fazer daquilo um sim”, diz. Foi assim quando se desentendeu com os pais ainda pequeno e foi morar com a avó. Apolinário fez da mudança um momento de transformação, aproveitando toda a liberdade que dona Carmem podia lhe oferecer. “Ela era uma pessoa muito especial, não sabia ler, mas era libertária e mesmo que não concordasse com o que eu fazia, sempre me respeitava.” Foi ela quem o impulsionou a fazer curso técnico, onde pela primeira vez se viu como o único negro. Dali, o rapaz voou.

 

Seu último rasante foi na São Paulo Fashion Week, onde junto com a Natura fez um desfile manifesto que fechou a semana com modelos de todos os tipos e cores invadindo os corredores abertos da Bienal. Quem viu, arrepiou e pôde sentir o que, afinal, Apolinário veio fazer neste mundo: misturar, cruzar, integrar.

A seguir, a entrevista que ele concedeu ao TNT LAB durante a semana de moda de São Paulo.

 

TNT: Você já disse em entrevistas que aprendeu muita coisa na favela, que a comunidade tem um sistema muito legal. Você não vê isso nas classes mais ricas?
Não. Porque o objeto comunidade dá-se pela necessidade. Quando você sabe o quanto dói o não ter, o precisar, o necessitar. Minha avó até falava: “Quando a água bate na bunda, você não esquece o quão gelada ela é”. Então o objeto comunidade dá-se por conta desse gelo no cu. É uma empatia de realidade, de “me ajuda que eu te ajudo”.

TNT: Os ricos não têm essa dinâmica?
Não. Eles sabem ajudar com um assistencialismo quase presbiteriano, sabe? Do tipo “toma aqui, mas é dessa forma”. Higienizando e não necessariamente respeitando ou abrindo o seu espaço pra uma nova frente. Como se você precisasse se adaptar para receber ajuda.

TNT: Quando você saiu da comunidade e entrou no mundo das agências, pela BOX1824, você começou a ver menos negros?

Na real, sempre fui meio que o único negro. Muito por conta da minha avó, que insistiu pra eu fazer escola técnica. Como precisava passar na prova, já era excludente, já fazia um recorte.

 

TNT: Já era um ambiente elitizado?
Sim, já era elitizado porque era hiperdifícil de entrar, eram 15 pessoas por vaga. E eu sofri pra caralho nesse processo de curso técnico porque as meninas queriam ir fazer trabalho no Starbucks, gastando 30 contos pra tomar um café e usar internet… eu nem tinha computador. Já no mercado de trabalho, comecei a ver mais negros, mas na maioria das vezes eram a mulher limpa, o segurança… foi aí que comecei a me questionar.

TNT: Esse cenário segue assim em volta de você hoje em dia?
Hoje, tenho um orgulho absurdo em dizer que 90% da minha equipe no São Paulo Fashion Week, por exemplo, é afrodescendente, e desses, 100% é composto de mulheres e homossexuais. Não tem nenhum homem heterossexual trabalhando diretamente com a Cemfreio. O porquê disso: a gente está falando de oportunidade de execução, de pertencer, de estar lá, de ser a patroa, de estar com a pulseira escrito “patrocinador”. Mostrar que a gente está trabalhando e que temos um nível alto de importância. Eu quero ser injeção de gás de autoestima em todas as pessoas que estão trampando comigo. Porque sei que quando essas pessoas estiverem na minha posição vão fazer a mesma coisa.

TNT: Você acha que de uns anos pra cá houve uma abertura da moda no geral neste sentido?

Sim, e fico megafeliz. Mas ainda assim somos dois, três, em um país em que somos 53%. É engraçado, né? E mesmo assim a gente não pertence tanto a esse espaço. Mesmo com pulseira não pudemos entrar no backstage e tive problema para entrar na sala de imprensa, mesmo credenciado.

TNT: Por você ser negro?
Não é dito, mas tenho certeza de que foi por isso. Da mesma forma que aconteceu com Fióti, que não pôde entrar no backstage do desfile dele. Como? Empulseirado, com a foto dele, tudo acontecendo e o segurança não permitiu que ele transitasse nos espaços. E a questão não é o segurança em si, temos que perguntar o porquê disso. Quais são as estruturas que fazem com que esse segurança, que muito provavelmente é negro, replique isso? Essa é a treta maior.

TNT: O que você diria para as pessoas que falam que o Brasil é um país miscigenado, que aqui não tem racismo?
Vem pra cá, porque tu não tá no Brasil. [rs] Tá vivendo em alguma utopia paralela.

TNT: E o que você faz quando encontra uma dificuldade?

Ah, dificuldade, pra mim, é o maior impulsionador de vontade. Quanto mais me falam não, mais tenho vontade de fazer daquilo um sim. Porque acordo já com um monte de não. O que faz a diferença entre o realizar o sonho e só sonhar é o quanto de energia que a gente aplica nisso. E algumas pessoas têm que aplicar mais energia que as outras – e é isso que quero questionar. Poderia ser mais horizontal e igualitário. Porque somos pessoas diferentes, somos bonitos pelas diferenças, e isso é o que faz da gente não só pessoas, mas personalidades.

 

TNT: Você fala bastante da sua avó. Ainda pequeno foi morar com ela. Por quê?
Sempre fui muito reagente à cultura imposta pelos meus pais. O meu pai é bem retrógrado em alguns pensamentos, e minha mãe o apoiava muito. Ela também teve depressão pós-parto e não se reconhecia de forma empática comigo. Com isso, quem acabou cuidando de mim foi minha avó.

TNT: E como era a relação de vocês?
Eu, muito novo, com 14, 15 anos, já namorava meninos. E dona Carmem foi libertária não por concordar em 100% com o que eu fazia, mas por me respeitar e deixar que eu vivenciasse meu corpo com liberdade e fizesse tudo que queria fazer.

TNT: Ela tinha uma cabeça aberta para aceitar o diferente?
Sim, exato! E ela faleceu com 84 anos. Mas pensa em uma senhora que com 60 anos veio do Nordeste no pau-de-arara e estava disposta a entender o que passa na minha cabeça? Tem um monte de gente hiperinstruída, com formação acadêmica, que não consegue… Ela entender isso, pô, ela era punk pra caralho!

TNT: Por que você saiu da casa dela?
Quando teve um primeiro derrame, uma tia foi morar lá para cuidar dela. Só que ela era fervorosamente evangélica e a gente tinha problemáticas diárias. Minha avó sempre me colocou pra frente e ela vinha me puxar pra trás. Consegui um trabalho na Hering e falei: “Quer saber? Eu vou pegar as malas e sumir”. Eu tinha 17 anos.

 

TNT: E entrou para o mundo da moda…
Foi o meu primeiro start com o mercado de moda e até mesmo com o mercado de trabalho. Entrei como assistente de operações de loja, o cara que dobra roupa. Fiquei uns três anos e meio ou quatro e fui o primeiro visual merchandising de operações em São Paulo. Cuidava de 14 lojas, depois de 48, depois de 260 lojas. Aos 20 anos saí de lá porque também estava me formando na faculdade.

 

TNT: Onde você estudou?
Fiz marketing na Anhembi Morumbi. Eu estava me formando e começando a abrir minhas questões: “Será que é isso que eu quero fazer no futuro? Será que é esse o legado que eu quero deixar?”. Foi aí também que me desvencilhei do mercado de varejo e fui pro rolê, me virar.

TNT: Você se deu muito bem no trabalho, cresceu rápido. Você ia bem na escola?
Sou hiperansioso e eu tenho DDA absurdo. Quem passa 15 minutos comigo sabe que eu perco a atenção muito rápido. Até a 5ª ou 6ª série eu era um aluno mediano, mas entendi que a sala de aula me privava de entender a matéria, de apreder o que eu precisava. Aí comecei a estudar em casa. Foi onde entendi minha excelência, minha potência. Passei entre as cinco maiores notas nessa primeira formação, na Anhembi Morumbi. Tanto é que eu fiz a faculdade lá porque consegui 100% de bolsa.

TNT: Curioso você dizer que a sala de aula te atrapalhava aprender.
Mas é verdade. É preciso desmembrar outras formas de ensinar. Hoje vejo que foi essa clareza que me fez subir de forma tão espetacular dentro da Hering. Porque lá eu treinava pessoas, tudo o que eu fazia se replicava, então era fundamental que as pessoas entendessem, e do jeito que eu passava elas entendiam. É uma mudança de mindset: a gente tem que dar enfoque nas pessoas que precisam aprender, deixar que elas tragam as dificuldades e entendam suas deficiências.

TNT: O que era e como nasceu a Robô Tenso?
Ah, que pergunta maravilhosa! A Robô Tenso foi esse processo do post mortem do Apolinário do varejo de moda. Isso aconteceu bem no começo do Facebook, era uma página de pesquisa e se desmembrou pra festas, tanto é que a gente tocou em eventos como Virada Cultural, SP na Rua. O nosso trabalho, meu e do Marcelo Elídio, era exatamente sobre apropriação de espaços não ortodoxos para festejar. Era um momento em que a internet tinha acabado de chegar em todos os celulares, que o 3G já tinha mais antena, que a gente estava começando a inserir a vida dentro de arquétipo on-line/off-line e que tudo estava meio que robotizando. Então a questão era: como manter o sentimento humano, o orgânico? Desse trabalho eu caí para dentro da BOX1824 e aprendi a trabalhar com pesquisas de forma correta.

 

TNT: E de onde veio a vontade de trabalhar as peças sem gênero da Cemfreio?
Eu hoje me reconheço como um homem, tanto fenótipo quanto biologicamente masculino, dentro dessa referência de construção social, mas a minha discussão maior de corpo sempre foi a da não binariedade. Quem me conhece há mais tempo faz até piada: “Eu nunca sei quem é o Apolinário”. Porque em cada momento eu estava com um corpo diferente. Era um cabelo muito comprido ou sem barba… um dia estava de vestido, no outro dia tava meio comfort. Gostava de criar choques de identidade, não só pras pessoas, mas pra mim mesmo. Isso é autoconhecimento.

TNT: Como vai a marca? Ja dá dinheiro?

Ainda não [rs]. Eu tô começando a ter que entrar dentro dos processos mercadológicos. Veja, hoje eu só vendo pela conta do Instagram, e só vendo pras pessoas que eu conheço. Não para as que eu conheço pessoalmente, mas pra aquela que veio na inbox e me questionou, eu fui até o Instagram dela, conversei… Porque eu não quero que a minha roupa esteja num mano que acha que o Bolsonaro é um cara “da hora”. Eu não quero dialogar com pessoas que não vão querer ouvir o que o meu produto diz. Sei que o que sustenta uma marca é a venda de roupa e eu dificultar a compra é como dificultar o meu sobreviver, mas também é a contrapartida de saber que eu tô enxertando energia e potência nos lugares certos.

TNT: Isso é resistência na moda?
Sim, fazer diferente, tirar o consumo, a compra e questionar a forma. Resistir é ser verdadeiro com a sua essência, sabe? Ser verdadeiro com a sua mensagem, com as suas necessidades.

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