As roupas que nos separam

 

Somos muito mais do que vestimos, mas, ao mesmo tempo, vestimos o que somos. Como as diferenças culturais aparecem nas roupas, e o principal: será que isso importa?

 

Lia Bock

 

Quando vemos uma mulher de hijab no Brasil estranhamos. Não só porque elas estão com o véu islâmico para cobrir a cabeça, mas porque ele vem invariavelmente acompanhado de blusa de manga comprida e calça – faça sol ou um calor de lascar. De regata e shorts, estranhamos também o congolês que veste boubou, traje social feito com tecido colorido. Há quem pare os africanos na rua e peça para fazer uma foto. Mas e o que esses estrangeiros vindos de culturas diferentes pensam de nós?

Conversei com refugiados e imigrantes sobre as roupas que nos separam e tentei entender até onde essas formas variadas de vestir fazem diferença. Porque vestimenta é ao mesmo tempo cultura, religião e expressão da individualidade. Vestimenta é assinatura, é posição política e ativismo. Mas seria ela um divisor de águas?

Não estamos falando de gente que escolheu o Brasil por amor. E, sim, de sírios, moçambicanos, palestinos, haitianos e congoleses que encontraram no país uma possibilidade de sobrevivência. O amor veio depois, com o tempo, com a convivência e com o respeito pelas diferenças, dentre elas o modo de vestir – e por que não dizer despir.

“Do ponto de vista moçambicano, o brasileiro praticamente não se veste”, diz rindo Eunice Xavier, 21 anos, que chegou aqui com 11. As roupas são muito curtas, os decotes enormes, a barriga fica de fora. No meu país temos o costume de nos cobrir. Na praia, por exemplo, usamos blusa e shorts mesmo pra entrar na água.” Eunice conta que deixou de usar as roupas africanas feitas de capulana porque não queria chamar muito a atenção na rua. Mas releva que a mãe segue com o hábito de usar o traje aos domingos. “Vejo um esforço dela para trazer a cultura moçambicana pra casa, para não deixar se perder. É legal ver essa resistência boa. Cultura nunca é demais, né?”

Num mundo que pede a diminuição dos muros e a flexibilização das fronteiras é um desafio integrar sem abafar a identidade de cada povo.  Hamza Mouridir, 31, é do Marrocos e a história de luta que o fez ter que deixar seu país conta muito sobre isso. “Sou militante do movimento berbere, que são como os indígenas do Marrocos. Não somos contra os árabes, mas lutamos contra a ‘arabização’ da identidade de nosso povo. Temos nossa cultura, nossas tradições, nossa língua e nosso sucesso civilizacional de mais de 30 séculos. Por que apagar isso para colocar outra cultura no lugar?”, ele questiona. “É por isso que eu gosto do Brasil, aqui cabem todas as diferenças e existe uma receptividade.”

Apesar das nossas roupas diminutas é a aceitação do que é diferente que mais chama a atenção dos estrangeiros por aqui.

Pitchou Luan, 38, veio do Congo há sete anos só com a roupa do corpo, mas fez questão de conseguir trajes típicos assim que pôde. “Tenho filha de 15 anos que chegou aqui com 11, percebo que ela está perdendo aos poucos a nossa cultura. Resgato tudo que posso para ela não esquecer de onde vem. Somos africanos e isso pode e precisa estar em nós. Por isso uso o boubou no lugar do terno, ele é uma marca forte que me identifica, além de realçar nossa cor, nossa beleza e nossa alegria”, conta. Para Pitchou é possível pertencer a dois lugares e ter duas culturas. “Basta não considerar uma menor que a outra.”

Rawa’a Alsaghir faz este exercício e rega em si tanto a cultura brasileira como a da palestina, sua terra. Para ela, que não usa hijab e pôde usar shorts mesmo vivendo em áreas conservadoras da Síria, a liberdade feminina experimentada no Brasil é maravilhosa. “As mulheres aqui são muito mais livres que as do mundo árabe. Lá também tem feministas trabalhando pelos nossos direitos, mas a força contrária é muito forte”, conta. “Gosto que aqui posso usar o que eu quero sem que as pessoas me julguem. Na Síria, onde vivi grande parte da vida, as pessoas iam reclamar com meu pai. Uma vez uma tia falou indignada: ‘Suas filhas estão de biquíni!’. E meu pai respondeu com bom humor: ‘Elas são bonitas, né?’. Mas isso não me faz esquecer de meus costumes nem me deixa perder de vista que é pela causa e pela palestina que devo lutar.”

E mesmo quem faz questão do hijab e da prática muçulmana vê a possibilidade de uma comunhão de culturas. Pode demorar um pouco, verdade, mas basta boa vontade. Salsabil Matooq tem 31 anos e veio da Síria há três. Quando chegou, passou seis meses sem sair de casa, estranhando tudo e principalmente as vestes femininas. Hoje, ela e o marido criam os três filhos sobre os preceitos muçulmanos sem negar a cultura brasileira. “Ensino em casa o que eles precisam aprender da cultura árabe e na escola eles aprendem como ser brasileiros. Quando crescerem não vão poder usar shorts, porque pra gente é assim, mas amo o Brasil e a forma como as pessoas nos receberam mesmo sendo tão diferentes. Aqui é a minha casa.”

A cultura resiste através da roupa e com respeito, várias culturas existem num mesmo lugar.

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