A rua ainda pulsa

 

Numa sociedade que vive na lógica das academias e dos condomínios, usar os espaços públicos para praticar esporte é resistir. Coloca o tênis, uma roupa confortável e vem com a gente tomar o que é seu

Lia Bock

“A gente tem que ser resistência pra no futuro ser liberdade. Tem que ocupar praça, parque e levar coisas boas pras pessoas.” É com esse discurso apaixonado que Rafael Amaral, 32 anos, puxa a galera para a Praça Horácio Sabino, onde pratica slackline. Dando pirueta sob uma corda bamba, ele, os amigos e quem mais colar hipnotizam os frequentadores da praça recém-reformada na região do Sumaré, em São Paulo.

Na metrópole onde a paisagem é tomada por carros de vidro escuro que parecem não levar ninguém e o concreto se estende do chão em que pisamos ao topo dos arranha-céus, ocupar a cidade com a presença humana é resistir. E desde 2012, Rafael e a equipe Slack Alves resistem. Composta por nove atletas, a Slack faz das praças centros de treinamento e convida os passantes, muitas vezes mergulhados em seus próprios celulares, a viver a rua, a usar a rua, a suar na rua.

E se por um lado o crescimento rápido e desorganizado das cidades nos colocou no olho do caos urbano, a boa notícia é que a disrupção desse modelo se tornou um caminho inevitável — e, assim como Rafael, cada vez mais gente se apropria de espaços públicos trazendo vida e promovendo uma quebra na rotina mecânica que nos consome.

Para Renato Cymbalista, urbanista e professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAU-USP, iniciativas como a do Slake Alves buscam devolver os espaços públicos para os seres humanos. “Sou a favor de tudo o que caminha no sentido de pegar de volta dos automóveis os nossos espaços, nem que seja por algumas horas nos fins de semana. Parece pouco, mas já pode ser um embrião de movimentos mais ousados no futuro.” Essa espécie de subversão do espaço público é o que acontece na avenida Paulista e no minhocão aos domingos. De forma barata e imediata o poder público transforma um espaço feito para os carros em parques urbanos.

 

Cidade para carros?

Cymbalista destaca que, desde a década de 1960, a cidade vem entregando grandes espaços para os veículos. E dados do Denatran mostram como a motorização é um movimento ainda com bastante força: num período de dez anos, a frota do estado de São Paulo passou de 15 milhões de veículos, em 2006, para 28,3 milhões, em dezembro de 2016. Só na capital, o número chegou a 7,8 milhões de automóveis. É nesse contexto que Cymbalista frisa que a participação da sociedade é fundamental para pressionar o Estado por mais e melhores espaços, bem como para aprimorar a gestão dos que já existem.

                  E se você acha que essa é uma briga perdida, pode se inspirar na história de Carlos Roberto Junqueira Cardozo, 39, o Betão. Ex-jogador profissional de basquetebol e hoje coordenador técnico da Associação Nacional de Basquete 3×3 (ANB3x3). Nascido nas ruas de Nova York, o esporte é pura resistência. “Sua origem vem do basquete improvisado na rua, onde as pessoas que não têm quadra para jogar usam tabelas em muros, árvores e postes”, conta. Betão é um dos precursores da modalidade no Brasil e incentiva essa tomada do espaço público para a prática esportiva: “O esporte é um dos segmentos mais desvalorizados pelo poder público. Mas, mesmo sem estrutura, a galera continua jogando e praticando embaixo de viadutos, em praças e parques. Tem que fazer isso mesmo”.

O 3×3 é praticado com três jogadores em cada time, todos arremessando na mesma cesta, em uma quadra com metade da dimensão da de basquetebol tradicional, e é prova de que o que nasce na rua pode dominar o mundo: este ano o esporte foi anunciado como parte do Programa Olímpico. E muita gente que estava ali só pra se divertir, agora sonha com o pódio em Tóquio em 2020.

Em São Paulo, há uma quadra oficial de basquete 3×3 no Parque do Brás, localizado na região centro-leste da cidade. Revitalizado em parceria com o TNT Lab, ela sedia os torneios da ANB e também dá suporte para o lazer da população local.

 

Esporte em espaço público

Ao analisar a movimentação de espaços públicos, Luís Felipe Abbud, urbanista e professor da Associação Escola da Cidade, lança um olhar positivo sobre a questão. “Quero acreditar que entramos em um caminho sem volta: uma vez que a própria população percebe a importância de espaços recheados de atividades atrativas, acessíveis e inclusivas, a cultura urbana passará a ser muito mais ativa na exigência desse tipo de atenção e investimento. Não somente por parte do poder público, mas também para que empresas privadas possam investir e elaborar projetos desse tipo.”

De acordo com o estudo “Pnad 2015: Prática de Esporte e Atividade Física”, divulgado em 2017 pelo IBGE, apenas 21,2% dos brasileiros praticam esporte em espaço público aberto. Por outro lado, os resultados obtidos também indicam que 118,6 milhões de brasileiros demonstraram interesse em ver mais locais recebendo investimento público para atividades físicas ou esportivas.

Numa lógica de academias e condomínios, a valorização do que é público representa a ruptura de rótulos e a democratização dos espaços onde podemos encontrar pessoas de todos os gêneros, cores, gostos, culturas e com demandas muito diferentes entre si. Isso se chama diversidade e é combustível fundamental para uma sociedade justa e pacífica.

“O espaço público carrega uma propriedade muito importante e garantidora da coexistência das diferenças culturais, que é a de não ser propriedade de ninguém e ao mesmo tempo pertencer a todos”, explica Abbud. “Estamos muito acostumados a nos encontrar publicamente utilizando serviços pagos sediados em bares, restaurantes, clubes e shopping centers. Mesmo que eles nos ofereçam serviços de qualidade, o direito à cidade e ao encontro é algo que deve independer do poder aquisitivo dos usuários.”

Resistência e cultura

Como defende a turma do Slack Alves, ocupar é também um grito por liberdade e pelo direito de se fazer entender que a cidade pertence às pessoas. “Muitas vezes sofremos represálias por ocupar esses espaços. A galera quer ver coisa bonitinha, quer ver status. E não é pra ser assim. Tem que ocupar, usufruir, viver os dias. Não dá pra ficar dentro de casa”, diz Rafael.

De acordo com Abbud, apesar da divergência de opiniões o poder público municipal se mostrou, nos últimos cinco anos, aberto a resolver as demandas urbanas de diferentes setores da sociedade, como ocorreu com o investimento nas ciclovias. E quando a iniciativa demora a vir de nossos governantes, vale lembrar que a população dá o seu jeito. Alguns exemplos são a escola de boxe embaixo do Viaduto do Glicério, a prática de rapel na ponte do Sumaré, a quadra de futebol improvisada no Viaduto Júlio Mesquita Filho e o “beco da Faria Lima”, ocupado por jovens skatistas.

“Diversos grupos, tanto do centro como da periferia, conseguem transformar suas necessidades e canalizar energia criativa para criar espaços de resistência e cultura. Não custa nada lembrar que a população é sempre o ingrediente mais valioso de nossas cidades. Ouvi-la e respeitá-la em toda sua diversidade é o segredo de qualquer projeto bem-sucedido de espaço público”, conclui Abbud.

E aí, bora pra rua?

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